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Dízimo no Novo Testamento: Em que Hebreus 7 Contribui com a Discussão?

Introdução

Quando publiquei o post sobre dízimos, não imaginei que o mesmo teria a repercussão que teve. Houve diversas respostas, algumas questionando a conclusão de que o dízimo é válido para a nova aliança. É ótimo podermos conversar teologia a fim de que o nosso conhecimento de Deus e de nós mesmos cresça e sejamos cada vez mais aproximados da vontade de Deus. Ofereço esse novo post, portanto, não como senhor do saber, mas como um conservo convidando irmãos para mutuamente nos afiarmos, assim como ferro ao ferro (Provérbios 27.17). Acusações de heresia, denúncias de imoralidade e imprecações devem ser guardadas para situações seríssimas e não para irmãos em Cristo intimados a viver em amor fraterno e, por meio deste, impactar o mundo (João 13.34-35). Ao mesmo tempo, todos nós temos que examinar o próprio coração diante do Senhor para conhecer as motivações mais profundas de nossas posições teológicas, atitudes práticas e textos escritos.

Antes de entrar no texto de Hebreus 7, é oportuna uma palavra sobre as obrigações cristãs na nova aliança. Há diferentes opiniões a esse respeito entre cristãos, sumarizo aqui o que penso. A lei mosaica (cerimonial, civil e moral – note que esses bons conceitos são teológicos, não necessariamente bíblicos) teve um importante papel de professora (tutora), a fim de conduzir o povo infante de Deus à Cristo. Em Cristo, o povo de Deus internacionalizado (igreja) atinge maioridade e maturidade e não mais está debaixo da lei mosaica, mas sim da lei da liberdade, lei do Espírito. Na vida diária é praticamente a mesma coisa, mas as motivações do coração mudam. Motivados pelo Espírito, fazemos a vontade de Deus revelada nas Escrituras, por gratidão e para agradar Àquele que nos amou primeiro (leia Gálatas e Romanos 5—10). Os mandamentos neotestamentários de amar como Cristo, ser batizado, buscar santificação, buscar o reino de Deus e tantos outros, funcionam dessa forma. Em Cristo temos liberdade para, de coração, fazer a vontade de Deus.

Tradução de Hebreus 7.1-10

Ofereço abaixo uma tradução própria do texto de Hebreus 7.1-10 com algumas poucas anotações gramaticais e depois apresentarei algumas informações contextuais importantes e proposições que, creio, podem ser extraídas corretamente do texto:

Hebreus 7.1 Pois este Melquisedeque, rei de Salém, sacerdote do Deus altíssimo, aquele que encontrou Abraão voltando da matança dos reis e o abençoou, 2 para quem o dízimo (δεκάτην) de todas as coisas Abraão dividiu (μερίζω), primeiro, por um lado, interpretado rei de justiça (βασιλεὺς δικαιοσύνης), depois, também, rei de Salém (βασιλεὺς Σαλήμ) que é rei de paz (βασιλεὺς εἰρήνης), 3 sem pai, sem mãe, sem genealogia, nem princípio de dias, nem final de vida tendo, assemelhado (Perf, ἀφωμοιωμένος) ao Filho de Deus, permanece (μένει) sacerdote para sempre (διηνεκές, continuamente, sem interrupção).

4 E observem (imperativo, Θεωρεῖτε) quão grandioso é esse, para quem o dízimo Abraão, o patriarca, deu (ἔδωκεν) dos despojos (ἀκροθίνιον – lit. melhores coisas). 5 Ora, por um lado, aqueles que dentre os filhos de Levi recebem o sacerdócio, mandamento têm de coletar os dízimos para o povo segundo a lei, isto é, dos irmãos deles, embora eles procedam (Perf) dos lombos de Abraão. 6 Aquele, por outro lado, que não tem genealogia dentre eles (Perf, γενεαλογούμενος) coletou dízimo (Perf) de Abraão e, tendo as promessas (chave em Hebreus), o abençoou (perf). 7 Não há discussão de que o inferior é abençoado pelo superior. 8 Neste caso, por um lado, homens mortais recebem os dízimos, naquele caso, por outro lado, aquele que é testemunhado como vivo. 9 E pode-se dizer que por meio de Abraão, também Levi que recebe dízimos,  pagou o dízimo (Perf), 10 pois ainda nos lombos do pai estava quando este encontrou Melquisedeque.

 

Contexto e Proposições do Texto

  • A tese (proposição, ensino) principal defendida pelo autor de Hebreus nesta carta diz respeito à superioridade de Cristo.[1] Jesus Cristo é uma revelação superior, é superior aos anjos, a Moisés, ao sacerdócio levítico e sua aliança é superior. A aplicação da carta é que exatamente por isso não se pode abandonar a Cristo e aqueles que o fizerem não terão chance de voltar atrás.
  • Hebreus é uma carta argumentativa, com um ótimo nível de grego e com uma lógica bastante difícil de se acompanhar.
  • A partir de Hebreus 4.14, o autor começa a defender que o sacerdócio de Cristo é superior ao sacerdócio levítico.
  • O sacerdócio de Cristo é superior porque a sua pureza e vocação são superiores (Hb 5.1-10), a sua aliança é superior (Hb 8.1—9.10), o tabernáculo é superior (9.10—10.28) e o sacrifício é superior (Hb 9.11—10.18)
  • Um dos argumentos do autor de Hebreus para defender a superioridade do sacerdócio de Cristo é que a ordem sacerdotal de Cristo, ordem de Melquisedeque, é superior (Hb 4.14—5.10 e 7.1-28). Nosso texto é parte dessa argumentação. É evidente, portanto, que o objetivo principal do texto não é falar sobre dízimos.
  • Há discussões entre intérpretes com relação a Melquisedeque ser uma Cristofania (aparição da segunda pessoa da Trindade) ou não. Baseado que que se fala no texto sobre Melquisedeque parece que sim; mas o texto em si não afirma isso. Vamos às proposições baseadas no texto apresentado acima:
  • Os versículos 1-3 apresentam a identidade de Melquisedeque. Ele é rei de Salém, sacerdote do Deus altíssimo, aquele que abençoou Abraão, o rei da justiça, o rei da paz, alguém que não tem origem, nem começo, nem fim e por isso, é sacerdote para sempre. O texto afirma que Abraão dividiu percentualmente e entregou o dízimo para Melquisedeque. De forma um tanto encríptica, o texto diz que Melquisedeque é assemelhado ao Filho de Deus.[2]
  • Os versículos 4-10 defendem que o sacerdócio de Melquisedeque é superior ao levítico. Os argumentos são: (1) O patricarca Abraão entregou dízimos à Melquisedeque (Hb 7.4). (2) Enquanto o sacerdócio levítico recebe dízimos dos irmãos e segundo a lei, o sacerdote Melquisedeque recebeu do pai Abraão e segundo a promessa (Hb 7.5-6).[3] (3) Quem abençoa é superior ao abençoado, logo, Melquisedeque é superior a Abraão (Hb 7.6-7). (4) Os sacerdotes levíticos são mortais, Melquisedeque, por sua vez, está vivo (Hb 7.8). (5) Finalmente, os sacerdotes que são filhos de Levi, que era filho de Jacó (Israel), que era filho de Isaque, que era filho de Abraão, estavam ainda nos lombos de Abraão e, por meio dele, pagaram dízimos à Melquisedeque.
  • De maneira muito lógica e bela, o autor de Hebreus defendeu, portanto, que o sacerdócio de Melquisedeque é superior ao sacerdócio levítico. Esse texto que analisamos prepara o caminho para o grande argumento que vem logo a seguir, defendendo a superioridade do sacerdócio de Jesus Cristo.
  • O que podemos dizer sobre os dízimos com base nesse texto? Creio que é justo dizer que ambos sacerdócios carregam consigo a função da coleta dos dízimos. O sacerdócio superior de Melquisedeque também coletava dízimos. Os dízimos pertencem aos dois sacerdócios e não são uma lei da aliança mosaica apenas.
  • A próxima perícope (Hb 7.11-19, veja abaixo)[4] afirma que o sacerdócio levítico era imperfeito, incompleto, fraco e inútil (Hb 7.11, 18) e que, junto com uma mudança de sacerdócio, acontece mudança de lei (Hb 7.12). O texto também diz que Jesus Cristo é sacerdote da ordem de Melquisedeque (Hb 7.13-17) e que a esperança do sacerdócio de Cristo é superior, pois por meio dela nos achegamos a Deus (Hb 7.19)
  • Hebreus 7.20-28 conclui a argumentação da superioridade do sacerdócio de Cristo afirmando que, visto que Cristo vive para sempre, o seu sacerdócio é eterno (Hb 7.20-24) e que, sendo oriundo dos céus e puro, Cristo não precisa purificar a si mesmo para ser capaz de purificar o seu povo (Hb 7.25-28).

 

Conclusão

O ensino principal de Hebreus 7 é o de que o sacerdócio de Cristo é superior ao sacerdócio levítico, pois é um sacerdócio da ordem de Melquisedeque. O autor usa Gênesis 14.18-24 e o Salmo 110.4 em sua argumentação. Embora o foco principal do texto não seja o dízimo, tudo o que o texto fala sobre dízimo é, evidentemente, verdadeiro. Na argumentação do escritor de Hebreus, há somente dois tipos de sacerdócio bíblico: o de Levi (mosaico, da lei) e o de Melquisedeque (da promessa), que é superior, definitivo e o mesmo de Jesus Cristo. Mesmo com a mudança da lei, peculiar à mudança de sacerdócio, em ambos os sacerdócios há entrega de dízimos; no de Levi e no de Melquisedeque, que é o de Cristo.

Existe continuidade e descontinuidade nas alianças de Deus. Algumas continuidades são: A guarda do sábado continuou no domingo; a circuncisão continuou no batismo; a páscoa continuou na santa ceia; o dever de ser santo continua com o auxílio do Espírito.

A minha proposta, então, é que a obrigação do dízimo continua, ainda que no Novo Testamento ela tenha uma roupagem nova: o deixar tudo por causa de Cristo; o dar tudo aos pobres; o fazer ofertas voluntárias com alegria; o usar os nossos bens com a consciência de que eles pertencem a Deus; o bom sustento dos obreiros do reino. Parece-me que o dízimo é só uma espécie de mínimo, é o que se fazia debaixo da lei. Na lei do Espírito, os cristãos são livremente levados a fazer muito mais pelo Reino, para a glória de Deus.

 

Assim, em espírito de humildade e comunhão fraterna, convido outros irmãos a se envolverem nesse estudo e compartilho material que pode ser proveitosamente estudado por todos os interessados no assunto:

 

[1] Veja: https://portugues.logos.com/2015/05/27/jesus-cristo-e-mais-e-melhor-um-estudo-introdutorio-em-hebreus-1-1-4/

[2] O “tempo verbal” perfeito atribui grande ênfase a esse verbo particípio. O verbo ἀφομοιόω significa fazer  parecido, fazer semelhante (similar), tornar-se como, ser como, parecer. (BDAG, 158)

[3] Promessa é um conceito riquíssimo em Hebreus, sendo apresentada como a contraparte superior da lei.

[4] 11Se, portanto, a perfeição houvera sido mediante o sacerdócio levítico (pois nele baseado o povo recebeu a lei), que necessidade haveria ainda de que se levantasse outro sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque, e que não fosse contado segundo a ordem de Arão? 12 Pois, quando se muda o sacerdócio, necessariamente há também mudança de lei. 13 Porque aquele de quem são ditas estas coisas pertence a outra tribo, da qual ninguém prestou serviço ao altar; 14 pois é evidente que nosso Senhor procedeu de Judá, tribo à qual Moisés nunca atribuiu sacerdotes. 15 E isto é ainda muito mais evidente, quando, à semelhança de Melquisedeque, se levanta outro sacerdote, 16 constituído não conforme a lei de mandamento carnal, mas segundo o poder de vida indissolúvel. 17 Porquanto se testifica: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque. 18 Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por causa de sua fraqueza e inutilidade 19 (pois a lei nunca aperfeiçoou coisa alguma), e, por outro lado, se introduz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus.

 

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