Resenha: Habitando o Deus Cruciforme (Inhabiting the Cruciform God)
Michael J. Gorman, Inhabiting the Cruciform God: Kenosis, Justification, and Theosis in Paul’s Narrative Soteriology (Grand Rapids: William B. Eerdmans Pub. Co., 2009).
Michael J. Gorman é membro da denominação americana Metodista Unida e estudioso do Novo Testamento. Atualmente ocupa a cadeira Raymond E. Brown em estudos bíblicos e teológicos na St. Mary Seminary and University, uma universidade católica na cidade de Baltimore, no estado americano de Maryland. É possível seguir o trabalho de Gorman por meio de seu website, em michaeljgorman.net.
O objetivo dessa resenha, mais do que apresentar o livro todo, é interagir com as duas teses principais de Inhabiting the Cruciform God [Habitando o Deus Cruciforme] (versão logos). Este livro dá continuidade ao projeto anterior de Gorman, Cruciformity: Paul’s Narrative Spirituality of the Cross [Cruciformidade: A Espiritualidade Narrativa Paulina da Cruz] (versão logos). A tese principal de Gorman é que “Teose é uma participação transformadora no caráter kenótico e cruciforme de Deus, por meio de uma conformidade ao Cristo encarnado, crucificado e ressurreto/glorificado, conformidade esta promovida pelo Espírito”.[1] (p. 7, 125, 162).
Gorman apresenta os seguintes argumentos a fim de defender sua tese principal: (1) Filipenses 2.6-11 é a história-modelo de Paulo (p. 12-13); (2) o versículo 6 traz em si tanto a ideia de “embora subsistindo em forma de Deus” quanto “visto que ele subsistia em forma de Deus”; (3) a auto-humilhação de Cristo vai contra a percepção humana comum de divindade, mas não contra a verdadeira divindade: “Deus, devemos dizer, é essencialmente kenótico e, portanto, essencialmente cruciforme. A kenose, portanto, não significa que Cristo se esvaziou de sua divindade (ou de outra coisa qualquer), mas, em vez disso, ela é o exercício que Cristo fez de sua divindade, sua igualdade com Deus” (p. 28).
Não é possível defender o primeiro argumento de Gorman, pois no próprio texto de Filipenses 2 o hino não é central, mas uma ilustração ética sobre auto-humilhação e a consequente exaltação da parte de Deus. Não é possível defender com sucesso que essa perícope importante e teologicamente rica seja o centro da carta de Filipenses, muito menos de toda a teologia paulina. O segundo argumento não se sustenta pois o ἀλλὰ de Fp 2.7 claramente se aplica a ambas sentenças do versículo 6 (ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων e οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ). A defesa de Gorman do significado duplo de ὑπάρχων (embora e visto que) baseado em outras passagens de Paulo que usam a mesma estrutura (embora/visto que [x] não[y], mas[z]) é muito interessante, mas não se sustenta.
O terceiro argumento é o mais importante para a tese de Gorman e, penso eu, o mais falacioso. Ele atribui à essência de Deus o atributo da humildade, que ele chama de cruciformidade ou kenose. Eu penso que essa é uma concepção seriamente errada pelos seguintes argumentos:
- O fato de que o texto apresenta Cristo reassumindo uma posição gloriosa depois de sua humilhação é evidência de que o “estado normal” para Cristo é a glória em vez da kenose. Paulo apresenta a kenose como o absurdo da encarnação.
- Ser amaldiçoado (cruciformidade) não é um atributo essencial de Deus e isso é facilmente demonstrado em ambos os testamentos. Mesmo em Filipenses é possível ver que a glória é sempre apresentada como uma característica essencial de Deus (1.11; 2.11; 3.21; 4.19-20). Isaías 40—55 e Hebreus (textos citados pelo autor como apresentando essa característica servil kenótica de Deus) apresentam de forma clara a distinção hipostática e econômica entre Deus Pai e seu Filho, Jesus Cristo. Embora não exista uma revelação melhor do Pai do que a pessoa divino-humana de Jesus Cristo, também existem diferenças entre eles, e Gorman, entendo, confunde isso.
- “O Deus contraintuitivo revelado em Jesus Cristo é kenótico e cruciforme, é o eterno vulnerável, Aquele que doa a si mesmo, o Deus de poder-em-fraqueza” (p. 32). Essa afirmação de Gorman lembra a teologia do processo, o teísmo aberto, a teologia relacional e a “teologia da Cabana”. Todas essas teologias fazem uma caricatura de Deus quando maximizam um dos atributos dele em detrimento dos outros. Eu penso que esse livro faz o mesmo com a pessoa de Cristo e, então, aplica tal caricatura a Deus. O Jesus que encontramos discutindo com os fariseus e o Leão-Cordeiro poderoso de Apocalipse não se encaixam com esse Cristo “eterno vulnerável” apresentado por Gorman.
Além de redefinir a Deus, Gorman também apresenta uma nova definição para a doutrina paulina da justificação, a segunda tese principal do livro. Ele diz que “Justificação é o estabelecimento ou a restauração das relações pactuais corretas – fidelidade a Deus e amor ao próximo – por meio da graça de Deus na morte de Cristo e a nossa co-crucificação com ele. Justificação, portanto, significa co-ressurreição com Cristo para uma nova vida dentro do povo de Deus e uma certa esperança para absolvição/vindicação, e assim ressurreição para uma vida eterna, no dia do julgamento” (85-86, 163-164).
Os argumentos que sustentam a concepção de Gorman de justificação são os seguintes: (1) “a lei exige uma guarda da aliança tanto horizontal quanto vertical” (p. 48); (2) em Paulo existe uma distinção entre pecado e pecados, o primeiro sendo o poder do qual as pessoas precisam ser libertas e o segundo se referindo às ações pelas quais o pecador precisa de perdão; (3) a justificação tem quatro aspectos: teológico, pactual, legal e escatológico; (4) a forma correta de ler a expressão pistis Christou em Paulo é fidelidade de Cristo em vez de fé em Cristo; (5) a morte de Cristo compreende um ato de fidelidade para com Deus e amor para com o próximo; (6) “fé é co-crucificação com Cristo; fé é uma experiência de morrer” (p. 63). (7) Romanos 6.1—7.6 apresenta não os resultados da justificação pela fé, mas a mesma redefinição de justificação de Gálatas 2.
Não é a nossa intenção aqui interagir com todos esses argumentos, então, proponho uma crítica geral. A tendência de Gorman de fazer tudo a mesma coisa (teose, participação, cruciformidade, justificação, santificação, fé e amor) vai contra o método científico comum de dissecar para entender. É evidente que os diversos aspectos da soteriologia paulina são intimamente relacionados, mas o próprio Paulo usa termos e conceitos diferentes para tornar mais claros certos aspectos de seu sistema e nós devemos seguir o exemplo do apóstolo. Também não penso ser correto escolher somente as cartas não disputadas e, dentre essas, somente algumas passagens em Filipenses, Gálatas e Romanos e, a partir de uma amostragem tão pequena, tentar redefinir e ajuntar conceitos que Paulo utiliza de forma distinta para compor seu complexo sistema soteriológico. Ainda assim, alguns aspectos da justificação apresentados por Gorman merecem maior consideração, especialmente no que tange à aliança.
No capítulo 3, Gorman apresenta a sua visão sobre santificação como uma conformação à cruciformidade de Deus em Cristo e no último capítulo propõe que a conformação a Deus implica em uma atitude de não-violência.
Apesar das críticas acima, o livro de Gorman deve ser lido por estudiosos da teologia paulina e aqueles interessados em soteriologia ou discussões avançadas em ética cristã. O livro é suscinto, criativo, provocativo, bem pesquisado e tem méritos do ponto de vista devocional. Acredito que o autor não convence em suas teses principais sobre teose e justificação, mas ainda assim recomendo-o por sua forma prática e contagiante de pensar teologia.
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[1] Gorman resume a teologia de Paulo como “uma soteriologia narrativa, habilitada pelo Espirito, de identificação completa com e participação no Deus revelado pelo Cristo crucificado, de forma que o evangelho de Deus reconciliando o mundo em Cristo também se torna a história do povo de Deus justificado, santo e dirigido pelo Espírito no mundo” (p. 8).