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Então, virá o fim! Uma proposta de interpretação dinâmica.

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E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então, virá o fim! (Mateus 24.14)
 
καὶ κηρυχθήσεται τοῦτο τὸ εὐαγγέλιον τῆς βασιλείας ἐν ὅλῃ τῇ οἰκουμένῃ εἰς μαρτύριον πᾶσιν τοῖς ἔθνεσιν, καὶ τότε ἥξει τὸ τέλος. (Mateus 24.14)
 
Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações. (Marcos 13.10)
 
καὶ εἰς πάντα τὰ ἔθνη πρῶτον δεῖ κηρυχθῆναι τὸ εὐαγγέλιον. (Marcos 13.10)

 

A interpretação desses dois textos carrega um debate contínuo ao longo da história da igreja. Por isso mesmo, esse post não tem a pretensão de resolver o problema com argumentos definitivos, mas de continuar o diálogo para alcançarmos uma melhor interpretação do texto. Como se sabe, a boa interpretação faz perguntas e tenta apresentar respostas, que, unidas, formam uma proposta de interpretação. Façamos isso de maneira introdutória.

Entre outras, algumas perguntas fundamentais aqui são: (1) O que Jesus quis dizer por “mundo” e o que ele quis dizer por “todas as nações”? (2) O que é o “fim” apontado por Jesus? E uma pergunta fundamental, que diz respeito ao cumprimento desse texto: (3) Isso já aconteceu ou é um acontecimento futuro?

 

O que Jesus quis dizer por “mundo” e “nações”?

 

No que concerne a interpretação bíblica, seria ótimo se as palavras tivessem apenas um significado. Não podemos dizer o mesmo na hora de aprender o vocabulário! Palavras são símbolos que carregam mais de um significado. Chamamos de campo semântico o espectro que compreende os diversos significados de uma mesma palavra. Quando olhamos para a palavras gregas “mundo” (οἰκουμένη) e “nações” (de ἔθνος), constatamos que o nosso problema para as compreender não pode ser facilmente resolvido.

Mundo (οἰκουμένη) no Grego Koinê pode ter os seguintes significados: (1) “a área habitada da terra, excluindo os céus e outras regiões, o mundo habitado, o mundo” e (2) “o mundo como uma unidade administrativa, o Império Romano”.[1] Já ficou claro o problema para você? Se Jesus usou a palavra “mundo” no primeiro sentido, podemos argumentar de que o texto ainda não se cumpriu, se no segundo, então é possível argumentar que o texto já se cumpriu. No caso do texto de Mateus, temos uma ajuda, o fato de que o próprio Jesus define “mundo” com a expressão “todas as nações” na linha seguinte. E o que significa “todas as nações” [em Mateus]?

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Como a palavra “etnos” (nações) é traduzida em Mateus, na versão americana ESV. Software Bíblico Logos.

A palavra “nação” (ἔθνος), segundo o dicionário BDAG, comporta os seguintes sentidos: (1) “um corpo de pessoas unidas por parentesco, cultura e tradições comuns, nação, povo”; (2) “pessoas estrangeiras a um grupo específico: … (a) aqueles que não pertencem a grupos que proclamam a fé no Deus de Israel; nações, gentios, infiéis … (b) cristãos não israelitas, gentios”.[2] O significado 1 parece ser o mais adequado ao nosso texto. Ainda assim, seria possível dizer com certeza que Jesus estava considerando todas as nações que existiam na face da terra, muitas das quais desconhecidas de seus ouvintes? Ou será possível que ele estivesse se referindo somente às nações conhecidas e que faziam parte do império romano?

Ronaldo Lidório define essas palavras da seguinte forma: “O ‘mundo’ aqui exposto no texto é a tradução de oikoumene que significa ‘mundo habitado’. A idéia textual, portanto, não é geográfica, territorial, mas sim demográfica…  o termo ethnesin, de ethnia, para nações, ou seja, grupos linguística e culturalmente definidos.” Com base nessas definições, Lidório explica o texto da seguinte forma: “o Evangelho do Reino será proclamado de forma inteligível e compreensível por todo o mundo habitado, através do testemunho martírico, de vida, da Igreja, a todas as etnias definidas”.[3] Note que a definição mais contemporânea de “mundo” e “nações” leva a uma aplicação mais atual do texto, que o vê como ainda não cumprido. John Nolland também vê uma amplitude maior no conceito “mundo”e “todas as nações”: “Mateus antecipa aqui de forma poderosa o papel central que as missões mundiais tem em sua concepção para o período pós-ressurreição”.[4]

Já Calvino, relativiza um pouco o termo afirma que “Cristo não se refere absolutamente a cada porção do mundo e não fixa um tempo em particular, mas somente afirma que o evangelho… seria espalhado aos cantos mais remotos antes do dia de sua última vinda”.[5] Pense no evangelho restrito a um punhado de discípulos de Jesus no início da era cristã. Agora pense em como o evangelho conquistou pessoas ao redor do globo e é proclamado em pregação, escritos e online. Você não diria que o evangelho já alcançou o mundo e todas as nações?

O que o texto diz que será pregado? O evangelho do reino! Leon Morris o define assim: “As boas novas de que Deus estabeleceu o seu reino por meio do que seu Filho fez pelos pecadores”.[6] O conteúdo de nossa pregação deve ser a salvação gratuita conquistada por Cristo na cruz e o reino já e ainda não presente que ele instaurará cabalmente em sua vinda.

 

O que é “o fim”?

Para entender o que é “o fim”, precisamos entender o começo do sermão escatológico de Jesus. Jesus com um só sermão está respondendo diferentes perguntas dos discípulos: “Dize-nos [1] quando sucederão estas coisas e [2] que sinal haverá da tua vinda e [3] da consumação do século” (Mt 24.3). “Estas coisas” refere-se à destruição do templo referida em Mt 24.2 e concretizada em 70 d.C. Nesse sentido, “o fim” veio.

Calvino discorda. Para ele, “Isso é impropriamente restrito por alguns referindo-se à destruição do templo e abolição do culto da lei; pois deve ser entendido como se referindo ao fim e a renovação do mundo”.[7] É evidente que a vinda de Cristo e a consumação ainda não ocorreram. Ou seja, “o fim”, ainda não aconteceu. Em suma, existe uma perspectiva profética em ação aqui. Uma mesma profecia aponta para eventos diferentes que acontecem em tempos diferentes, de forma que o cumprimento do primeiro confirma a certeza do cumprimento final.

 

O evangelho já foi pregado em todo o mundo?

Alguns intérpretes, dentre eles R. C. Sproul, dizem que o evangelho já foi pregado em todo o mundo. Os argumentos principais desses estão em Atos e Paulo. O texto de Atos mostra que logo após a descida do Espírito, “estavam habitando em Jerusalém judeus, homens piedosos, vindos de todas as nações debaixo do céu” (At 2.5). Essas pessoas de todos os lugares ouviam as “grandezas de Deus” (At 2.11) em sua própria língua materna e ouviram também a pregação do evangelho feita por Pedro. Paulo, em Colossenses 1.6, afirma que a palavra da verdade do evangelho “chegou até vós; como também, em todo o mundo, está produzindo fruto e crescendo”. Alguns versículos à frente, Jesus afirma que o evangelho que os colossenses ouviram “foi pregado a toda criatura debaixo do céu”.[8] Em Romanos 1.8, Paulo afirma que a fé daqueles cristãos da capital do império estava sendo proclamada “em todo o mundo”.[9]

Então o evangelho foi pregado em todo o mundo? Sim, em todo o mundo daquela época (império romano) foi. Se considerarmos as nações de Gênesis 10, também concluiremos que o evangelho já alcançou a todas. Se considerarmos o mundo de forma mais literal, no entanto, o evangelho ainda não chegou a todas as nações.

Esse segundo aspecto, o mundo contemporâneo, é a perspectiva da maioria das pessoas envolvidas intimamente com missões em nossa época. Movimentos como o antigo AD 2000, a ênfase na janela 10×40 e povos não alcançados em geral estão intimamente ligados a ideia de que o mundo todo ainda não ouviu a pregação do evangelho. Com o avanço das missões mundiais, alguns até mesmo anunciam em quanto tempo conseguiremos cumprir esse mandato. Ou seja, se você aplicar ao texto uma compreensão mais ampla de “mundo” e “todas as nações”, pode-se afirmar que o mesmo não se cumpriu e que nós temos sobre nós o dever da grande comissão: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28.18-20).

 

Conclusões

 

  1. Existe um sentido real, sem forçar o texto, em que o evangelho já foi pregado em todo o mundo. Considerando que todos os outros sinais apontados por Jesus, em alguma medida, tem se feito presentes ao longo da história, devemos realmente vigiar e esperar que o Senhor Jesus volte a qualquer momento.
  2. O imperativo missionário não deve arrefecer se concluirmos que o evangelho já foi pregado no mundo todo no sentido do texto. A grande comissão diz: “fazei discípulos  de todas as nações” e “pregai o evangelho a toda criatura”. E Pedro nos relembra: “Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 2.9).
  3. “Mundo” e “nações” são conceitos dinâmicos. Ao longo dos anos novas “nações” nascem e o mundo se expande. Assim, ao mesmo tempo em que é possível entender que esse texto já se cumpriu na época da Igreja Primitiva, tomamos sobre nós o peso de fazê-lo se cumprir em nossa época, levando o evangelho a todas as nações, grupos étnicos e tribos, traduzindo a Bíblia e pregando a toda a criatura, independente de quão distantes estejam, longe, muito longe ou muito perto. Existem pessoas que convivem com você que não tem uma Bíblia e nunca ouviram uma exposição do evangelho. Faça a sua parte.
  4. O fim que veio sobre Jerusalém no ano 70 d.C. e outros fins limitados que por vezes tem vindo sobre povos na história, devem nos alertar para o grande fim que vai acontecer quando o Senhor Jesus Cristo voltar. Devemos viver na expectativa e estar sempre preparados para nos encontrar com o Senhor nos ares para estar para sempre com ele (1Ts 4.16-18).
  5. Essa esperança escatológica da vinda do Senhor e do reino eterno que ele estabelecerá deve ser o combustível de consolo, esperança e força de trabalho para o cristão.

 

Maranata! Vem Senhor Jesus! (Ap 20.20)

 

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[1] William Arndt, Frederick W. Danker, e Walter Bauer, A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature (Chicago: University of Chicago Press, 2000), 699–700. Consultado no Software Bíblico Logos.

[2] William Arndt, Frederick W. Danker, e Walter Bauer, A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature (Chicago: University of Chicago Press, 2000), 276–277. Consultado no Software Bíblico Logos.

[3] Ronaldo Lidório, Teologia Bíblica da Contextualização. Veja também John Piper.

[4] Nolland John, “Preface”, in The Gospel of Matthew: a commentary on the Greek text (New International Greek Testament Commentary; Grand Rapids, MI; Carlisle: W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 2005), 967. Consultado no Software Bíblico Logos.

[5] http://biblehub.com/commentaries/calvin/matthew/24.htm

[6] Leon Morris, The Gospel according to Matthew (The Pillar New Testament Commentary; Grand Rapids, MI; Leicester, England: W.B. Eerdmans; Inter-Varsity Press, 1992), 601. Consultado no Software Bíblico Logos.

[7]http://biblehub.com/commentaries/calvin/matthew/24.htm

[8] Os últimos dias segundo Jesus.

[9] Veja um ótimo artigo de interpretação preterista em planetpreterist.com.

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